Nos últimos anos assistiu-se a uma das polémicas mais vazias e patéticas de que há memória: a data de início do milénio. Os únicos vencedores desta polémica foram provavelmente as produtoras de champanhe ou as agências de viagens, que venderam a preços inacreditáveis pacotes de viagens para «ser o primeiro a saudar o milénio»… em dois anos seguidos.
Peço desculpa ao leitor por recordar uma vez mais o núcleo da questão: o calendário da era cristã, estabelecido no século VI por um «ignorante monge cristão», Dionysius Exiguus, não continha o ano zero; o ano do nascimento de Jesus era por definição o ano 1 da era cristã. Consequentemente, o segundo milénio terminou em 2000, e o terceiro milénio teve o seu início em 1 de Janeiro de 2001.
Esta questão parece incontroversa. No entanto, o assunto foi debatido ad nauseam por todo o tipo de pessoas — na maior parte das vezes curiosos muito mal informados. Entrados no ano 2001, tudo isto foi rapidamente esquecido e a memória colectiva reteve os seguintes factos, hoje quase lenda urbana: o ano zero não existiu, «ignorado ou esquecido pelo estúpido monge Dionysius Exiguus». O problema resumiu-se a um erro devido à ignorância de Dionysius, um bárbaro que nem o conceito de zero conhecia.
Pobre Dionysius Exiguus! O seu único pecado foi saber demasiada Matemática, não só em comparação com os seus contemporâneos, como sobretudo em comparação com os verdadeiros bárbaros: aqueles que, não fazendo a menor ideia das subtilezas matemáticas do seu trabalho, surgem 1500 anos depois a declará-lo ignorante «por não conhecer o zero». Mal podia imaginar o sábio Dionysius o que o esperava: o seu conhecimento e estudo matemáticos apedrejados, 1500 anos depois, por uma horda de vândalos totalmente ignorantes do seu extraordinário trabalho!
Dionysius Exiguus (Dinis o Pequeno) foi um erudito e sofisticado monge cítio que cedo foi para Roma. Entre muitas das suas realizações conta-se a redacção da Lei Canónica. No ano 241 Diocletiani (de Diocleciano, de acordo com o calendário então vigente) foi-lhe encomendado pelo Papa João I um estudo delicado: terminando as tabelas relativas ao cálculo do Domingo de Páscoa dali a sete anos, a tarefa de Dionysius era a de construir as tabelas relativas aos noventa e cinco anos subsequentes.
Tratava-se de uma tarefa computacionalmente complexa. O Concílio de Niceia de 325 decretara a seguinte regra: o Domingo de Páscoa é o primeiro domingo após a primeira lua cheia depois do equinócio de Primavera. Assim, Dionysius tinha de determinar as posições e fases da Lua por um período superior a cem anos, o que era bastante complexo; este cálculo tinha o nome de computus.
Em primeiro lugar, é necessário acertar os calendários solar e lunar. Dionysius utilizou a regra Metónica: 235 meses lunares correspondem a 19 anos solares. A duração média de cada mês lunar é ligeiramente superior a 29,5 dias; há 114 meses com 29 dias, 114 meses com 30 dias e 7 meses «embolísmicos», que para acertar os calendários têm também 30 dias.
Como calcular a data do Domingo de Páscoa? Suponhamos, que num dado ano a Lua está no dia 2 do seu ciclo a 21 de Março. A próxima lua cheia será a 2 de Abril e, portanto, o Domingo de Páscoa será o domingo imediatamente a seguir.
O que acontece no ano seguinte? Como o ano solar é 11 dias mais longo do que o lunar, a Lua estará no ano seguinte no dia 13 do seu ciclo a 21 de Março. Assim, a lua cheia seguinte é a 22 de Março, e a Páscoa será no domingo imediatamente a seguir — ou seja, no único domingo entre 22 e 28 de Março.
A diferença entre o dia do ciclo lunar no ano corrente e no ano de referência tinha o nome de «epacto». No exemplo acima o epacto é 11. No terceiro ano o epacto será 22, pelo que a Lua estará no dia 24 do seu ciclo a 21 de Março. No quarto ano o epacto é 33 — o que é mais do que um ciclo lunar. Temos portanto de subtrair 30 (um ciclo lunar corrigido por ter havido entretanto um mês embolísmico); assim, neste ano o dia lunar a 21 de Março é 5. Desta forma, a lua pascal é a 30 de Março — e a Páscoa no domingo seguinte.
Tudo isto são cálculos intrincados mas relativamente triviais. Contas de somar e subtrair — aritmética, em suma. O grande mérito de Dionysius está na intuição matemática que teve para simplificar as suas contas.
Designando o ano de referência por ano 1, é fácil encontrar uma regra que fornece o epacto no ano N: como se acrescentam 11 dias por ano, subtraindo múltiplos de 30, essa regra é
Epacto(N) = (N – 1) x 11 (mod 30)
onde a operação (mod 30) fornece o resto da divisão por 30. Por exemplo, o epacto no ano 19 é 18 x 11 (mod 30) = 18. Analogamente, no ano 20 (ou seja, passados 19 anos sobre o ano de referência) deveria ser 19 x 11 (mod 30). 29. No entanto, neste ponto é necessário introduzir uma pequena correcção, devida ao facto de os meses embolísmicos quase compensarem, mas não compensarem exactamente, o fenómeno dos anos bissextos: para acertar definitivamente calendários lunar e solar, é necessário introduzir mais um dia — o medieval saltus lunae (razão pela qual em inglês um ano bissexto se chama «ano de salto», leap year). Resultado: o epacto ao fim de 19 anos é 30, e não 29. Ou seja, como o epacto é definido a menos de múltiplos de 30, o epacto ao fim de 19 anos é zero.
A observação matemática crucial de Dionysius é a seguinte:
Toda esta mecânica de cálculo seria enormemente simplificada se a contagem dos anos se fizesse a partir de um ano de referência em que o epacto fosse zero, visto que a partir daí voltará a ser zero sempre que o número do ano seja um múltiplo de 19. Além disso, o epacto no ano N dessa era poderá calcular-se de forma imediata sem saber o epacto nos anos anteriores, através de
Epacto(N) = [11 x N (mod 19)] (mod 30)
Ou seja, Dionysius estava a propor redefinir a contagem dos anos de tal forma que o primeiro ano da sua tabela tivesse epacto zero. Isso só aconteceria se ele diferisse do primeiro ano da era que Dionysius se propunha definir por um múltiplo de 19.
Mas há mais. Já que se vai redefinir a contagem dos anos numerando-os da forma matematicamente mais conveniente, que se faça um trabalho completo. Os anos bissextos ocorrem de quatro em quatro anos; ou seja, a cada quatro anos há que acrescentar um dia ao ano. Isto sugere fortemente, mais uma vez para simplificar o cálculo, que se redefina a contagem dos anos por forma a que o ano seja bissexto sempre que o seu número de ordem na nova era seja divisível por 4. Isso evitaria confusões sobre que anos devem ser bissextos: por muito iletrados que fossem os seus sucessores, deveriam pelo menos ser capazes de dividir por 4. Ora o primeiro ano na sua tabela, 248 Diocletiani, deveria precisamente ser um ano bissexto.
Conclusão de Dionysius: o novo sistema de numeração dos anos deve ser tal que esse ano seja a) múltiplo de 19, para simplificar o cálculo dos epactos; b) múltiplo de 4, para simplificar a determinação de anos bissextos. Como 19 é primo, o mínimo múltiplo comum a 4 e 19 é 76. Assim, por considerações meramente matemáticas, Dionysius precisava de impor que o ano em questão fosse, na nova era, um múltiplo de 76.
O que tomar como referência da nova era? A resposta, para um monge cristão, era óbvia: o nascimento de Jesus Cristo. Embora ninguém soubesse o ano exacto de nascimento de Cristo, sabia-se que esse acontecimento tinha ocorrido há cerca de meio milénio. Um cálculo trivial mostra que os múltiplos de 76 mais próximos de 500 são 456, 532 e 608. Conclusão: Dionysius adoptou a solução matemática mais próxima da realidade, e afirmou sem grandes explicações que nas suas tabelas passava a designar o ano 248 Diocletiani por «anno domini 532» (como se fosse do conhecimento geral que Cristo tinha nascido 532 anos antes).
A construção de Dionysius encarna o verdadeiro espírito matemático. Sendo-lhe pedido para calcular tabelas para 95 anos, não só resolveu esse problema como construiu um sistema que simplificava bastante futuras soluções, como ainda resolveu, como subproduto, o problema da determinação de anos bissextos. Se hoje temos uma regra simples para determinar que anos são bissextos, a Dionysius o devemos.
E foi este o nascimento da era cristã. Curiosamente, não envolveu nenhum tipo de argumentos teológico-filosóficos, especulações religiosas ou reconstituições históricas sobre a vida de Jesus e acontecimentos subsequentes. Nada disso: o ano 1 da era cristã é aquele que é por razões puramente matemáticas. Uma solução muito elegante e muito mais científica do que seria de esperar em pleno século VI.
Dionysius Exiguus não era um «ignorante monge medieval que não conhecia o zero». Pelo contrário: a sua preocupação matemática foi precisamente acertar a nomenclatura dos anos com o epacto zero. Nas suas «tabelas novas» para o cálculo das grandezas relevantes surge explicitamente: Anni Domini DXXXII: (…) epactae nula. Ou seja, no ano 532 da nova era, o epacto é zero. Dionysius conhecia o conceito de zero. Por outro lado, quantas dos aprendizes de feiticeiro que 1500 anos depois o culpam pela inexistência de um «ano zero» saberiam fazer os seus complexos cálculos?
Note-se, por mera curiosidade, que 1 de Janeiro de 1 é no calendário proposto por Dionysius a suposta data de circuncisão de Jesus, que teria nascido a 25 de Dezembro do ano anterior. Assim, Jesus teria completado 1 ano no ano 1, 2 anos no ano 2, etc. — que é exactamente a convenção utilizada por todos nós.
Dionysius nunca explicitou a existência do ano 0, porque isso era completamente irrelevante para os seus cálculos e para as tabelas que lhe tinham sido encomendadas pelo Papa; mas é de crer que a sua existência era tão clara para ele como para nós.
A suposição de que a era antes de Cristo terminaria com o ano I a. C. é um mito de origem indeterminada mas muito posterior a Dionysius; há quem a coloque no século XVII. Mas é da responsabilidade de espíritos incapazes do mais elementar raciocínio matemático. Não era o caso de Dionysius Exiguus, o abade que sabia demais.
Curiosamente, a mesma discussão vazia sobre a existência ou não de um «ano zero» no nosso calendário colocou-se já na passagem do século XIX para o XX. Pelos vistos, voltará provavelmente a colocar-se na próxima passagem de século…
Por outro lado, isto significa que do ponto de vista histórico o ano 0 definitivamente não assinala o nascimento de Cristo. Na realidade, a história mostra que Cristo terá nascido entre 7 e 4… antes de Cristo. O Evangelho segundo São Mateus afirma que Cristo nasceu durante o reinado de Herodes (recordemos a famosa «degola dos inocentes»), e este morreu quatro anos antes do «ano zero». Dionysius, obviamente conhecia estes factos, tendo pois perfeita consciência de que Cristo não teria nascido na data que estava a propor para o início da contagem dos anos.
Para Dionysius Exiguus, à boa maneira matemática, isto era completamente irrelevante: o trabalho que lhe foi encomendado pelo Papa era o de determinar as tabelas para as datas da Páscoa.
Nada nos seus trabalhos mostra que ele se tenha interessado minimamente em determinar o ano preciso do nascimento de Cristo — e muito menos que tenha tido a intenção de fazei depender disso a solução do problema matemático que lhe foi proposto.
Pelo contrário: o seu interesse seria provavelmente minimizar a questão, não fosse alguém levantar a lebre e destruir a sua elegante solução matemática. Parafraseando o físico Paul Dirac, se os factos não estão de acordo com a teoria, tanto pior para os factos.
O significado histórico de chamar ao início da era cristã «Ano 1» é igual ao significado físico de afirmar que o potencial eléctrico da Terra é zero ou que o potencial gravítico é zero no infinito: nenhum.
E foi assim que, no dia de 1 de Janeiro de 2001, a Matemática ditou que o mundo celebrasse a passagem de exactamente 2000 anos sobre… nenhum acontecimento histórico em particular.
in Da Falsificação de Euros aos Pequenos Mundos, de Jorge Buescu