segunda-feira, 23 de abril de 2018

A doutrinação de mentiras




Como a maioria de vocês, fui criado entre pessoas que sabiam — que estavam convictas. Não tinham motivos para questionar ou investigar. Não tinham dúvidas. Sabiam-se possuidoras da verdade. Em suas crenças não havia suposições, não havia talvez. Elas tinham a revelação de Deus. Conheciam o início de tudo. Sabiam que Deus havia começado a criação numa segunda, quatro mil e quatro anos antes de Cristo. Sabiam que na eternidade anterior àquela manhã ele não havia feito nada. Sabiam que ele levou seis dias para criar a Terra — todas as plantas, todos os animais, toda a vida e todos os globos que giram no espaço. Sabiam exactamente o que havia feito em cada dia e quando descansou. Sabiam qual era a origem, a causa do mal, de todos os crimes, de todas doenças e da morte.

Conheciam não apenas o começo, mas também o fim. Sabiam que a vida tinha dois caminhos, um largo e um estreito. Sabiam que o caminho estreito, cheio de espinhos e urtigas, infestado de víboras, molhado de lágrimas, manchado por pés sangrentos, conduzia ao céu; e que o caminho largo, plano, ladeado por frutas e flores, repleto de riso, música e felicidade conduzia directamente ao inferno. Sabiam que Deus estava fazendo todo o possível para escolhessem o caminho estreito, e o Demónio usando todas artimanhas para que escolhessem o caminho largo.

Sabiam que havia uma batalha perpétua entre os grandes Poderes do bem e do mal pela posse das almas humanas. Sabiam que, muitos séculos atrás, Deus deixou seu trono e veio a este pobre mundo na forma de um bebê — que morreu pelos homens — a fim de salvar uns poucos. Também sabiam que o coração humano encontrava-se totalmente depravado, que o homem naturalmente amava o mal e odiava a Deus com toda sua força.

Ao mesmo tempo, sabiam que Deus havia criado o homem à sua imagem e semelhança, e que estava perfeitamente satisfeito com sua obra. Também sabiam que o homem havia sido corrompido pelo Demónio, que com embustes e mentiras enganou o primeiro ser humano. Sabiam que, como consequência disso, Deus amaldiçoou o homem e a mulher; o homem com o trabalho, a mulher com a escravidão e a dor, e ambos com a morte; e que também amaldiçoou a própria Terra com espinhos e abrolhos. Tinham conhecimento de todas essas coisas sagradas. 

Também sabiam tudo que Deus havia feito para purificar e elevar a humanidade. Sabiam tudo sobre o dilúvio; sabiam que Deus — com excepção de Noé e sua família — havia afogado todos os seus filhos — tanto os jovens quanto os velhos, tanto os bebês quanto os patriarcas, tanto os homens quanto as mulheres, tanto as mães amorosas quando as crianças felizes —, pois sua misericórdia dura para sempre. Também sabiam que havia afogado todas as bestas e aves — tudo que caminha, rasteja ou voa —, pois seu amor se estende por todas as suas criaturas. Sabiam que Deus, no intuito de civilizar seus filhos, devorou alguns com terremotos, destruiu outros com tempestades de fogo, matou alguns com raios, milhões com fome, com pestilência, e sacrificou inúmeros milhares nos campos de batalha. Sabiam que era necessário crer em tais coisas e amar a Deus. Sabiam que a salvação só poderia vir através da fé e do purificante sangue de Jesus Cristo.

Todos que duvidassem ou contestassem estariam perdidos. Viver uma vida moral e honesta — honrar seus contratos, cuidar de sua esposa e filhos, construir um lar feliz, ser um bom cidadão, um patriota, um homem justo e reflexivo — era simplesmente um modo respeitável de ser condenado ao inferno.

Deus não recompensava os homens pela sua honestidade, sua generosidade, sua coragem, mas simplesmente pela sua fé. Sem fé, todas as chamadas virtudes convertiam-se em pecado. Todos os homens que praticassem tais virtudes sem fé mereciam sofrer o suplício eterno.

Todas essas coisas confortantes e racionais eram ensinadas pelos ministros em seus púlpitos, pelos professores em aulas dominicais e pelos pais em casa. As crianças eram vítimas — eram atacadas em seus próprios berços, nos braços de suas mães. Os professores travavam sua guerra contra o sentido natural das crianças, e todos os livros que liam eram repletos das mesmas verdades impossíveis. As pobres crianças estavam indefesas. A atmosfera que respiravam estava saturada de mentiras — mentiras que se tornaram parte delas.


Texto de Robert Green Ingersoll, escrito em 1896

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