Faz dia 19 de Abril de 2018, 512 anos.
O
dia 19 de Abril de 1506 amanheceu pacífico e soalheiro. Na igreja de
São Domingos, em Lisboa, a missa dessa manhã decorria provavelmente com a
calma modorra do costume.
Mas,
de súbito, a placidez da missa foi interrompida por um estranho
fenómeno que se oferecia perante os olhos de todos os fiéis: a imagem do
Cristo pregado na cruz que se encontrava sobre o altar estava iluminada
por uma estranha e misteriosa luz.
A
superstição e a exacerbada crença dos fiéis imediatamente os fez
acreditar estar na presença de um milagre: a imagem do Cristo parecia
até que irradiava luz própria.
Todos
se ajoelharam em fervorosas preces, em êxtase perante aquele milagre
que se lhes oferecia, ali mesmo, à frente dos seus olhos.
Mas
há sempre um desmancha-prazeres em histórias como estas: um dos fiéis
mais afoitos logo se apressou a explicar aos seus colegas de missa que a
luz nada tinha de misteriosa, pois provinha simplesmente do reflexo de
uma candeia de azeite que estava ali próxima.
E pronto! Caiu o Carmo e a Trindade!
A
primeira coisa que alguém descobriu foi que o chico-esperto era um
cristão-novo, um judeu convertido à pressa mas, pelos vistos, demasiado
depressa. Foi o suficiente para logo dali o arrastarem pelos cabelos
para o adro da igreja, onde foi imediatamente chacinado pela multidão
dos fervorosos tementes a Deus, e o seu corpo queimado no local.
O êxtase místico da multidão logo se propagou a toda a cidade. Lisboa parecia ter ela própria enlouquecido.
Respeitáveis
representantes do clero católico saíram dos seus pacatos refúgios de
oração e percorriam as ruas de um lado para o outro empunhando
crucifixos e gritando: «Heresia! Heresia!».
A
multidão depressa foi engrossando e, ajudada até por marinheiros
holandeses e dinamarqueses que se encontravam no porto, iniciou uma
gigantesca rusga por toda a cidade.
Para
evitar o caos e a anarquia, sempre más conselheiras, os padres e frades
dominicanos tomaram a piedosa responsabilidade de organizar
convenientemente o tumulto: judeu ou cristão-novo que era identificado
ou apanhado, era imediatamente preso e levado para o Rossio e ali era
queimado em gigantescas fogueiras que os escravos municiavam
ininterruptamente de lenha.
Os
judeus e os cristãos novos, homens e mulheres, que se refugiavam em
casa eram arrancados à força dos seus esconderijos. Até as crianças de
berço eram fendidas de alto a baixo ou esborrachadas de encontro às
paredes.
Como mesmo nestas coisas da fé é sempre bom juntar o útil ao agradável, o
misticismo assassino daqueles fervorosos e bons católicos não os
impediu de pilhar as casas por onde passavam e de ajustar velhas contas
com inimigos que muitas vezes nada tinham a ver com o judaísmo.
Mesmo
os que se refugiavam nas igrejas e se agarravam desesperadamente às
imagens dos santos eram levados e arrastados à força para o Rossio e
queimados vivos.
A
chacina durou dois dias e só terminou por puro cansaço da populaça.
Relatos da época falam no sangue que escorria pelas ruas abaixo no
Bairro Alto ou na Mouraria. Calculam os historiadores que nesta matança
em nome dos mais sagrados princípios e da pureza do catolicismo morreram
mais de 4.000 pessoas.
Tudo, claro, em nome dessa coisa extraordinária que algumas pessoas têm e que tanto se orgulham de ter, que se chama «Fé».
Tudo feito por bons católicos.
Tudo em nome de Deus
Texto de Luís Grave Rodrigues, no Diário de uns ateus.
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