Porquê existem 4 evangelhos e não 5 ou 8?
A história de como os quatro evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas e João foram escolhidos pela Igreja como autênticos e inspirados dentre os mais de cem que então existiam é muito interessante. Um dos critérios da escolha foi o dos milagres. Segundo a Igreja, alguns dos prodígios dos evangelhos apócrifos eram pouco sérios ou muito fantasiosos. Mas houve outros motivos para decidir que somente os quatro evangelhos escolhidos tinham sido inspirados pelo Espírito Santo e os outros não.
A seleção dos evangelhos canónicos foi feita no concílio de Niceia (325) e ratificado no de Laodiceia (363). O modus operandi, ou o processo utilizado, para distinguir entre textos verdadeiros e falsos, foi, segundo a tradição, o da “eleição milagrosa”. Foram apresentados, de facto, quatro versões para justificar a preferência pelos quatro livros canónicos:
1- Santo Irineu, no ano 205, assim o explicou: “O Evangelho é o pilar da Igreja. A Igreja está espalhada pelo mundo inteiro e o mundo tem quatro regiões. Convém, portanto que existam quatro evangelhos”. E também: “O Evangelho é o sopro do vento divino da vida para os homens, e, assim como existem quatro pontos cardeais, também devem existir quatro evangelhos”. Além disso, “o Verbo criador do Universo reina e brilha sobre os querubins, e os querubins têm quatro formas, por isso o Verbo obsequiou-nos com quatro evangelhos”. Curiosamente, os quatro escolhidos só foram aceitos pelos Padres da Igreja pouco antes de serem declarados inspirados.
2 - Depois de os bispos terem rezado muito, os quatro textos voaram por si sós e foram pousar-se sobre um altar.
3 - Puseram todos os evangelhos em competição sobre um altar e os apócrifos caíram ao chão, enquanto os canónicos não se mexeram; 3) depois de escolhidos, os quatro foram colocados sobre o altar e foi pedido a Deus que se neles houvesse qualquer palavra falsa os fizesse cair ao chão, o que não sucedeu com nenhum deles.
4 - O Espírito Santo, na forma de uma pomba, penetrou no recinto de Niceia e pousando no ombro de cada bispo sussurrou a cada um deles quais eram os evangelhos autênticos e quais os apócrifos. Esta última versão revelaria, além do mais, que uma boa parte dos bispos presentes no concílio eram surdos ou muito incrédulos, visto ter havido grande oposição à selecção – por voto maioritário, que não unânime – dos quatro textos canónicos actuais.
Os Evangelhos atuais são oriundos dos textos originais?
Esse é outro ponto importante a ser esclarecido, porquanto, nas traduções e nas pregações dos líderes religiosos das correntes cristãs tradicionais isso é afirmado e reafirmado sem o menor constrangimento.
Em primeiro lugar, as versões originais não existem!
O professor Julio Trebolle Barrera (? - ), doutor em teologia, licenciado em Filosofia Pura e Ciências Bíblicas, informa-nos que “Os autógrafos dos livros do NT perderam-se para sempre”. (BARRERA, 1999, p. 398).
O ex-evangélico Bart D. Ehrman (1955- ), considerado a maior autoridade em Bíblia do mundo, Ph.D. em Teologia pela Princeton University, especialista em Novo Testamento, igreja primitiva, ortodoxia e heresia, manuscritos antigos e na vida de Jesus, afirma em seu livro O que Jesus disse? O que Jesus não disse?, afirma o seguinte:
[...]Eu sempre voltava a meu questionamento básico: de que nos vale dizer que a Bíblia é a palavra infalível de Deus se, de fato, não temos as palavras que Deus inspirou de modo infalível, mas apenas as palavras copiadas pelos copistas– algumas vezes corretamente, mas outras (muitas outras!) incorretamente? De que vale dizer que os autógrafos (isto é, os originais) foram inspirados? Nós não temos os originais! O que temos são cópias eivadas de erros, e a vasta maioria delas são centúrias retiradas dos originais e diferentes deles, evidentemente, em milhares de modos.
[...]Uma coisa é dizer que os originais foram inspirados, mas a verdade é que não temos os originais. Então, dizer que eles foram inspirados não me serve de grande coisa, a não ser que eu possa reconstruir os originais. E além disso, a vasta maioria dos cristãos, em toda a história da Igreja, não teve acesso aos originais, fazendo de sua inspiração um objeto de controvérsia. Nós não apenas não temos os originais, como não temos as primeiras cópias dos originais. Não temos nem mesmo as cópias das cópias dos originais, ou as cópias das cópias das cópias dos originais. O que temos são cópias feitas mais tarde, muito mais tarde. Na maioria das vezes, trata-se de cópias feitas séculos depois. E todas elas diferem umas das outras em milhares de passagens.
Na Bíblia de Jerusalém, ao se introduzir os evangelhos sinópticos – Mateus, Marcos e Lucas, os tradutores colocam várias considerações; dentre elas, destacamos:
[...]Conhecemos atualmente mais de 2000 manuscritos gregos escritos em pergaminho que nos dão o texto dos evangelhos sinóticos, escalonando-se entre o quarto e o décimo séculos. Todos esses manuscritos oferecem entre si variantes de minúcias. Os textos que usamos atualmente, seja para estudar os Sinóticos, seja para traduzi-los nas línguas modernas, são os dois mais antigos desses manuscritos: o Sinaítico, proveniente do mosteiro de Santa Catarina do Sinai, hoje conservado do Museu Britânico, e sobretudo o Vaticano, conservado na Biblioteca Vaticana. Ambos são datados de meados do séc. IV.
Vê-se, portanto, que embora dizendo que as traduções são fiéis aos originais, esses originais, nos quais se baseiam, não são, verdadeiramente, originais, pois nenhum dos seus autores, sejam eles quem forem, viveu até o século IV para contar a história que consta dos Evangelhos.
Necessário é também relatar que a bíblia[em especial os Evangelhos] sofreram sérios acréscimos com o fim de apoiar uma certa doutrina ou prática litúrgica ou costume moral.
Esses factos têm feito com que os estudiosos da bíblia venham negar a questão de a bíblia ser um livro inspirado por Deus econsequentemente livre de erros.
Quem são os autores dos evangelhos?
Sempre estamos às voltas com pessoas muito crédulas, que acham que os nomes que constam dos títulos dos Evangelhos designam os seus autores. Em razão disso acreditam, também, que os personagens Mateus e João faziam parte daquele grupo de doze apóstolos que conviveram com o Mestre de Nazaré, e que foram, portanto, “testemunhas oculares dos eventos relatados".
Percebemos que, mesmo que imbuídos de muita boa vontade, falta a ambos o conhecimento do que a crítica moderna pensa sobre as reais epígrafes dos Evangelhos.
O que nos fez aflorar irresistível curiosidade de pesquisar o assunto, foi o teor do seguinte passo:
Atos 4,13: “Ao verem a intrepidez de Pedro e João, sabendo que eram homens iletrados e incultos, admiraram-se".
Como João, a exemplo de Pedro, um homem “iletrado e inculto”, poderia escrever um Evangelho tão rebuscado como o atribuído a ele? Fora isso, ainda se percebe nele um palavreado bem acima do que se poderia esperar para um simples pescador (Mt 4,18-22), sem que, com isso, queiramos desmerecê-lo; mas é fato. Essa mesma linha de raciocínio deve-se aplicar também a Pedro, já que, no Novo Testamento, existem duas cartas atribuídas a ele. Quanto a João, além do seu Evangelho, existem duas cartas e o Apocalipse que são atribuídos a ele. Em relação ao Apocalipse, veja-se, mais à frente, o que diz Pepe Rodríguez (1953-).
Primeiro, é de relatar que boa parte dos tradutores das diversas bíblias em suas introduções, divergem muito no que concerne à verdadeira autoria dos evangelhos, ao que parece, cada um comenta o que melhor convém para a doutrina de sua catedral.*
Vamos trazer alguns estudiosos e exegetas para vermos o que pensam a respeito dos autores e de outros importantes pontos dos evangelhos.
a)Pepe Rodriguez:
" A primeira coisa que salta à vista, quando nos abeiramos do Novo Testamento, é o facto de os textos que o compõem serem tão tardios. Só começaram a ser escritos num período compreendido entre o último quartel do século I d.C e o primeiro quartel do século II d. C., à excepção das epístolas de Paulo, escritas entre 51 e 67 d.C. Mas o que parece ainda mais incompreensível e absurdo é que quem tinha muito para testemunhar nada escreveu, ou quase nada, enquanto os que nada tinham para testemunhar acabaram sendo os redactores da maior parte dos textos do cânone neotestamentário. É tão ilógico como se uma dezena de historiadores ou de jornalistas (que, propagandistas como eles, eram os apóstolos ou enviados), presente no momento em que se estava a dar o maior prodígio da história humana, tivessem ficado totalmente calados e o ocorrido não tivesse de qualquer modo ficado documentado e só tivesse sido dado a conhecer quarenta anos depois, e, ainda e apenas, através de escritores desvalorizados de um par de ajudantes de duas dessas supostas testemunhas privilegiadas. Senão vejamos: O Evangelho de Marcos é o documento mais antigo de que dispomos sobre a vida de Jesus. Ora, Marcos não foi discípulo de Jesus, nem o conheceu pessoalmente. O que sabe sobre ele foi o que, depois da crucificação, ouviu a Pedro nas prédicas públicas. O Evangelho de Lucas e os Actos, do mesmo autor, são documentos fundamentais para conhecer a origem e o desenvolvimento da Igreja primitiva. Ora, Lucas não foi apóstolo. Também ele escreveu de ouvir dizer. Compôs os seus textos a partir de passagens que plagia de documentos anteriores e de diversas proveniências. E, por outro lado, do que havia escutado de Paulo, que não só não fora discípulo de Jesus, como até 37 d.C. – um ano depois da crucificação de Jesus – se revelara um perseguidor fanático e tenaz do cristianismo nascente.
Mateus, pelo contrário, foi apóstolo. Porém, uma parte do seu Evangelho foi escrita a partir de documentos anteriores redigidos por um outro Marcos que, esse, não fora apóstolo. Resta João Zebedeu que foi, também ele, apóstolo. Acontece, contudo, que o Evangelho de João e o Apocalipse não são obra sua, mas de um outro João. Foram escritos por um tal João, o Ancião, um grego cristão que se baseou não só em textos hebreus e essênios, como nas recordações que conseguiu obter de João, o Sacerdote, identificado como “o discípulo amado” de Jesus (mas que não é João Zebedeu), um sacerdote judeu muito amigo de Jesus que foi viver para Éfeso e onde veio a morrer em idade muito avançada.
Porém, como mostrámos no seu devido momento, o texto do Evangelho de João, escrito pelo grego João, o Ancião, em princípios do século II, revela um Jesus absolutamente deformado, que fala com uma prepotência descarada, contrariamente à humildade que o caracteriza nos relatos dos três sinópticos".
b)Bart D. Ehrman:
"Embora evidentemente não seja o tipo de coisa que os pastores costumem contar às suas congregações, há mais de um século existe um forte consenso de que muitos dos livros do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas cujos nomes estão ligados a eles.
Por que surgiu a tradição de que esses livros foram escritos por apóstolos e por companheiros dos apóstolos? Em parte de modo a garantir aos leitores que eles foram escritos por testemunhas oculares e companheiros das testemunhas oculares. Uma testemunha ocular merece a confiança de que iria contar a verdade sobre o que realmente aconteceu na vida de Jesus. Mas a realidade é que não é possível confiar em que as testemunhas ofereçam relatos historicamente precisos. Elas nunca mereceram confiança e ainda não merecem. Se testemunhas oculares sempre fizessem relatos historicamente precisos, não teríamos a necessidade de tribunais. Quando precisássemos descobrir o que realmente aconteceu quando um crime foi cometido, bastaria perguntar a alguém. Casos reais demandam muitas testemunhas, porque seus depoimentos diferem entre si. Se duas testemunhas em um tribunal divergissem tanto quanto Mateus e João, imagine como seria difícil chegar a um veredicto.
A verdade é que todos os Evangelhos foram escritos anonimamente, e nenhum dos autores alega ser uma testemunha. Há nomes ligados aos títulos dos Evangelhos (“o Evangelho segundo Mateus”), mas esses títulos são acréscimos posteriores aos próprios livros, conferidos por editores e escribas para informar aos leitores quem os editores achavam que eram as autoridades por trás das diferentes versões. Que os títulos não são originalmente dos Evangelhos é algo que fica claro com uma simples reflexão. Quem escreveu Mateus não o chamou de “Evangelho segundo Mateus”. As pessoas que deram esse título a ele estão dizendo a você quem, na opinião delas, o escreveu. Autores nunca dão a seus livros o título de “segundo fulano".
c)Karen Armstrong:
"Não sabemos quem escreveu os evangelhos. Quando apareceram, eles circularam anonimamente, e só mais tarde foram atribuídos a figuras importantes da Igreja primitiva. (60) Os autores eram cristãos judeus, (61) que escreviam em grego e viviam nas cidades helenísticas do Império Romano. Eram não somente escritores criativos – cada um com suas tendências particulares –, mas também redatores competentes, que editaram materiais anteriores. Marcos escreveu por volta de 70; Mateus e Lucas no final dos anos 80, e João no final dos anos 90. Os quatro evangelhos refletem o terror e a ansiedade desse período traumático".
d)Geza Vermes:
"é óbvio para qualquer leitor imparcial, sem viés religioso, que, se o Quarto Evangelho está certo, seus precursores têm de estar errados, ou viceversa. Os Sinópticos e João não podem estar simultaneamente corretos, pois o primeiro atribui a Jesus uma carreira pública que dura um ano, ao passo que João a estende em dois ou três anos, mencionando duas ou possivelmente três celebrações da Páscoa consecutivas durante o ministério de Jesus na Galileia e na Judeia. Do mesmo modo, se for exata a datação de João da crucificação na véspera da Páscoa, isto é, em 14 Nisan, os Sinópticos, que descrevem a Última Ceia como um jantar de Páscoa e situam os acontecimentos que conduzem à execução em 15 Nisan, têm de estar errados. Ou para hebraizar e adaptar apropriadamente o provérbio inglês à situação da Páscoa judaica, não é possível guardar o pão ázimo e comê-lo.
A mesma opinião majoritária considera a identidade do autor indeterminável. Exceto pelo título: “segundo João”, que é ambíguo – que João? – e que somente mais tarde foi vinculado ao texto, o próprio Evangelho, do Capítulo 1 ao Capítulo 20, não menciona nenhum autor. No Capítulo 21, anexado por alguém que não era o evangelista (cf. Versículo 24), há uma tentativa de identificá-lo com “o discípulo amado de Cristo”, que se supõe tacitamente ser o pescador galileu João, filho de Zebedeu".
e)Tom Harpur:
"O Evangelho de Marcos não faz segredo do fato de que os primeiros discípulos era pescadores iletrados. Às vezes, ele até os apresenta como pessoas meio estúpidas. A ideia de que qualquer um deles tenha ajudado a criar e escrever um novo gênero literário, o Evangelho, não pode ser verdadeira. Nenhum Evangelho foi escrito por uma testemunha ocular. S. Paulo, o mais antigo escritor do Novo Testamento, nunca se encontrou com Jesus histórico – só com o Cristo mítico.
Assim, ninguém sabe com certeza quem criou os Evangelhos, e em que data. É preciso lembrar que eles nunca foram “escritos” como se escreve um livro hoje em dia. São obras altamente “editoradas” que parecem ter sido compiladas a partir de coletâneas mais antigas de ensinamentos e, acredito, de mitos antigos e autos religiosos descritos nas “Religiões de Mistério"
A única conclusão é que não sabemos se esses evangelhos foram realmente escritos pelos autores em epígrafe[ pelos custos, não], por essas a muitas outras razões, alguns críticos(incluindo o Gil Yossuf) consideram os autores míticos, ou seja, sem existência.
Texto da autoria de Gil Yossuf
Bibliografia:
ARIAS, J. Jesus esse grande desconhecido. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
HARPUR, T. Transformando água em vinho: uma visão profunda e transformadora sobre os evangelhos. São Paulo: Pensamento, 2010.
RODRÍGUEZ, P. Mentiras fundamentais da Igreja Católica, como a Bíblia foi manipulada. Lisboa, Portugal: Terramar, 2007.
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