sábado, 19 de maio de 2018

A Doação de Constantino ou como uma mentira torna poderosa uma igreja.




Um dos documentos forjados que mais rendibilidade têm dado à Igreja Católica é o decreto de 30 de Março de 315, Constitutum Constantini ou Privilegium Sanctae Romanae Ecclisae, a famosa Doação de Constantino, como ficou conhecida. Neste documento, que foi apresentado como tendo sido redigido pelo próprio Constantino, além de se relatar o seu processo de conversão, por ação do papa Silvestre, o imperado declara que:

"na medida em que o nosso poder imperial é tanto mais terreno, decretamos que a sua santíssima igreja romana será venerada e referenciada e que a sagrada sede do bem-aventurado Pedro será gloriosamente exaltada e passará a usufruir de uma glória superior ao nosso Império e ao seu trono terrestre. [...] A dita sede regerá as quatro principais de Antioquia, Alexandria, Constantinopla e Jerusalém, assim como todas as Igrejas de Deus em toda a parte. [...] Finalmente, devemos saber que doamos a Silvestre, papa universal, o nosso palácio, bem assim como todas as províncias, palácios e distritos não só da cidade de Roma e de Itália, como de todas as regiões de Ocidente."

Trata-se duma criminosa falsificação, feita a mando do papa Estêvão II (752-757), e por este utilizada para forçar a aliança militar do rei franco Pepino e de seu filho Carlos Magno com a igreja para combater os Lombardos que ameaçavam as riquezas e o poder do papado romano. Após a derrota dos Lombardos, o rei Pepino, convencido de que Estêvão II era o sucessor de São Pedro e do imperador Constantino, devolveu à igreja Católica todas as terras que por direito lhe pertenciam, graças à Doação de Constantino.

Mediante esta vigarice, a igreja Católica acumulou um património e um poder de tal modo imensos, que ainda hoje vive dos rendimentos que lhe proporcionou esse enorme e infame delito, origem do Estado da Igreja. O texto mais antigo que se conhece da referida Doação figura nos manuscritos das Decretales pseudoisidorianas (c. 850), mas só se tornou público no século XI, quando já era universalmente reconhecido como autêntico um documento que raríssimas pessoas tinham efetivamente visto.

O papa Leão IX (1049-1054), nos seus escritos, cita amplas passagens da falsa Doação para justificar o primado do bispo de Roma, mas só com o papa Gregório VII (1073-1085) se transformou na base fundamental do direito canónico. Os papas posteriores, como Urbano II (1088-1099), Inocêncio III (1198-1216), Gregório IX (1227-1241) ou Alexandre VI (1492-1503), serviram-se amplamente desse documento para se impor aos príncipes, anexar territórios, etc...

Um curiosidade histórica relativa a este monumental engodo, que tanto prejudicou os reis europeus, foi protagonizada por Otão III (983-1002) que, num documento datado de 1001 e dirigido ao papa Silvestre, considera a referida Doação como falsa e nula, o que não impediu que continuasse a produzir os seus efeitos. Neste documento, Otão III, depois de repudiar a corrupção e as malversações que haviam caracterizado os papas, escreve: 

"Distorceram as leis pontificais e humilharam a igreja romana, e papas houve que chegaram ao ponto de reclamar a maior parte do nosso império. Não se interrrogavam porque o tinham perdido por sua própria culpa, nem se preocupavam com o que haviam delapidado com as suas loucuras, estavam apenas interessados, depois de terem dispersado aos quatro ventos as suas próprias possessões, em descaregar as culpas do acontecido sobre o nosso próprio império e em reclamar a propriedade alheia, isto é, a nossa e a do nosso império. São mentiras por eles inventadas [ab iilis ipsis inventa], nomeadamente pelo diácono João, também conhecido por Dedo-cortado, que redigiu um documento com letras de ouro e forjou uma enorme mentira cobrindo-a com o nome de Constantino, o Grande. "

A impostura foi finalmente detetada em 1440 por Laurenzio Valla, cónego de Latrão e secretário pontifício que, ao analisar o texto e ao recensear todos os seus elementos estilísticos e históricos, incluindo os anacronismos, concluiu tratar-se duma falsificação. No entanto, o medo de vir a ser executado pelo papa coibiu Valla de proceder à publicitação da sua descoberta que só foi conhecida em 1519, o mesmo ano em que Martinho Lutero, e não se trata duma coincidência, começou a sua luta contra a igreja, ao criticar duramente o vergonhoso negócio pontifício das indulgências. A igreja Católica, claro está, continou a garantir com empenho a autenticidade da Doação de Constantino e só quando, em pleno século XIX, os dirigentes das nações europeias sacudiram a tutela do Vaticano, a igreja reconheceu finalmente que se tratava, de facto, de um documento forjado.

Seja como for, em virtude de uma espécie de norma moral cristã,cuja origem e teor nos são totalmente desconhecidos, aigreja Católica, apesar de ter fundado o seu Estado e o seu poder temporal sobre a referida mentira e a subsequente série de expoliações, nunca manifestou até hoje o menor indício de estar arrependida, nem esboçou qualquer gesto para devolver o seu património ilícito aos seus legítimos proprietários.Muito pelo contrário, a hierarquia católica, exatamente como na época de Outão III, continua a exigir da sociedade civil que esta financie a sua péssima gestão.


Texto de MENTIRAS FUNDAMENTAIS DA IGREJA CATÓLICA, de Pepe Rodriguez

1 comentário:

  1. Tudo é feito com base em fatos históricos para dizer que algo é falso ou verdadeiro. Assim como sabe-se que Lutero estava nem aí para a reforma! Tudo, também, é de interesse próprio ou da elite!

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