terça-feira, 8 de maio de 2018

O imperador Constantino e a aliança com a Igreja Católica




Com a abdicação simultânea de Diocleciano e de Maximiano a 1 de Maio de 305, abrindo uma crise interna no império Romano, deu-se a grande oportunidade para o futuro das Igrejas cristãs. A subida ao poder, como augustos, de Constâncio Cloro e de Galério, resultou num enfraquecimento geral do Estado. Ocupados em guerras intestinas que opunham entre si os diferentes imperadores, não havia tempo para continuar com as campanhas de extermínio contra os cristãos, iniciadas por Diocleciano. Assim, em Abril de 311, Galério assinou um édito que conferia o estatuto ao cristianismo de religio licita (religião lícita). Um ano depois, Constantino, deu ordem para que fossem restituídos às igrejas os bens confiscados e lhes fosse entregue uma contribuição do tesouro imperial.

Mas o imperador Constantino não se limitou a ser apenas generoso. Por essa altura, deu-se uma disputa intestina feroz na Igreja do Norte de África que opunham duas fações cristãs - a Igreja dos santos comandada pelo Maiorino (depois por Donato), e a Igreja Católica chefiada pelo Mensúrio (e depois por Ceciliano). Os primeiros diziam que os Católicos eram os traditores (traidores), acusando de se terem aliado aos perseguidores romanos enquanto estes haviam resistido, não entregando os textos sagrados como Mensúrio havia feito, como preferiram ser mártires a ser apóstatas. A partir de 313 o confronto entre as duas fações tornou-se insanável e o cisma instalou-se entre as duas igrejas.

Lembro que disputas e guerras entre fações cristãs era algo banal nos primeiros séculos. No início do séc. III, o Bispo Hipólito de Roma citava 32 seitas cristãs em luta umas com as outras, e em finais do séc. IV, o Bispo Filastro de Bréscia referia-se a 128 seitas e 28 heresias. As comunidades cristãs sempre em guerra umas contra as outras, tentando cada uma impor a sua própria doutrina aos restantes seguidores de Jesus, e todas hostilizando os judeus, davam um espetáculo deplorável e nunca visto no contexto religioso da Antiguidade. Foi com Constantino que a fação Católica acabou por se impor. Lembro que atualmente a situação é ainda pior, pois o cristianismo está dividido em várias grandes religiões e em centenas de seitas de todos os tamanhos e dimensões, cada uma reivindicando o título e verdadeira e autêntica seguidora de Jesus.

Voltando à luta intestina entre a igreja dos santos e a igreja Católica, o imperador Constantino fez mais que marginalizar a igreja de Donato ao entregar à igreja de Ceciliano avultados bens. O imperador já tinha um projeto político ambicioso destinado a adaptar a realidade eclesial às suas necessidades pessoais e imperiais, e a transformar duradouramente as relações entre as igrejas cristãs, dando grandes poderes à Igreja Católica.

O imperador Constantino, logo desde o início, achou-se por direito questionar as decisões conciliares que lhe não era favoráveis, tal como o de convocar ele próprio os concílios gerais dos bispos. Este desprezo e mesmo insulto com que tratava a hierarquia católica, nunca levantou qualquer protesto por parte da mesma. E a razão é simples, devia-se à generosidade das suas doações tal como no trato real que dispensava aos bispos convocados para os seus concílios. E foi assim que o imperador comprou vontades, apoios, decretos conciliares à medida e até uma igreja inteira, a católica, cujo hierarcas depressa amealharam uma riqueza e um poder ilimitados, o famoso Patrimonium Petri (Património de Pedro).

Foi pelos anos de 315-316 que Constantino começou a cristianizar as leis do seu império, dando proteção aos mais desprotegidos e, ao mesmo tempo, tornando mais rigoroso o direito matrimonial (ramo do direito que continua a ser até hoje uma das grandes obsessões do clero católico). Foi em 318 que reconheceu oficialmente a jurisdição episcopal, foi em 321 que autorizou as igrejas a receber heranças, em 320 ou 321 declarou o domingo dia de festa, efeméride que fora até então festejada como o dia do Sol, e entretanto, foi dando grandes ajudas para a construção de dezenas de igrejas luxuosas financiadas com dinheiros públicos, etc.

Esta ligação entre o imperador e a Igreja Católica tornou-se tão íntima que os bispos passaram a assumir funções que até então era exclusivas do Estado. A exemplo, em julgamentos, o testemunho dum bispo tinha mais força do que o dos cidadãos distintos (honoratiores) e era inatacável! Mais, foi reconhecida aos bispos jurisdição própria em causas civis (audientia episcopalis), o que significava que quem tivesse um litígio se podia dirigir ao bispo que cuja sentença seria considerada "santa e venerável", por decreto de Constantino. O bispo tinha o poder de sentenciar, mesmo contra o desejo expresso duma das partes e a sua decisão era inapelável, limitando-se o Estado a executar a dita.

Claro que o imperador nunca deixou de controlar os assuntos eclesiásticos. Quando surgiu a disputa do arianismo, Constantino apoiado pelo seu conselheiro, o Bispo Ósio de Córdova, convocou para Niceia uma assembleia geral dos bispos, e tendo como ordem do dia a discussão da doutrina de Ario. Esta assembleia aconteceu em 325 e estiveram cerca de 300 bispos. O concílio empreendeu a elaboração dum símbolo onde ficasse definida a cristologia ortodoxa. Aos títulos de "Deus de Deus, luz de luz" foi acrescentado o de "consubstancial ao Pai" (homoousis). Este inesperado acrescento, certamente sugerido por Ósio de Córdova, acabou por ser aceite na sequência do especial empenhamento de Constantino, pois os padres conciliares não podiam recusar o que quer que fosse ao imperador.

Quando chegou o momento de firmar o texto assim redigido, o imperador deixou claro que os clérigos que o negassem a fazê-lo seriam imediatamente desterrados pelas autoridades imperiais. Apenas Ario e os seus partidários egípcios, demasiado comprometidos com essa fórmula condenada, resistiram a essa chantagem, sendo imediatamente recambiados para longínquas localidades das províncias danubianas. Por amor à unidade, por respeito ao imperador, ou por simples cobardia, os presentes e mesmo aqueles que consideravam o homoousios como uma fórmula herética, aceitaram vincular-se à decisão tomada.

Foi a 19 de Junho de 325 que o concílio foi encerrado, com grande banquete oferecido pelo imperador, em honra dos bispos assistentes, tão grande que muitos deles chegaram a pensar se já não estariam no reino de Deus. O imperador, durante o banquete, fez um discurso em que exortou os bispos à unidade, à modéstia e ao zelo missionário, além de ter presenteado pessoalmente cada um deles com cartas em que se ordenava aos funcionários imperiais que distribuíssem todos os anos trigo aos pobres e aos clérigos das diversas igrejas. E assim partiram os bispos reconfortados, entusiasmados e ainda mais submissos do que nunca. Constantino havia-os conquistado definitivamente para a sua causa e estava satisfeito com o concílio. A unidade das Igrejas católicas finalmente uma expressão visível, restando aos cismáticos a possibilidade de se lhe juntarem em condições humilhantes enquanto que as personnae non gratae que se negaram a subscrever a profissão de fé, iam já a caminho do exílio. Tudo isso era, em grande parte, obra sua, o que lhe dava a possibilidade de intervir diretamente nas questões eclesiásticas.

Só depois é que os bispos mais perspicazes se aperceberam que, ao aceitarem tão facilmente às imposições de Constantino, tinham trocado a livre iniciativa que detinham pelo logro da cooperação com o Estado. É facto que depois de terminado o concílio, os bispos Eusébio de Nicodemia, Máris de Calcedónia e Teógnis de Niceia disseram publicamente que tinham aceitado as imposições do imperador por o temer e que desejavam retratarem-se. De Constantino receberam guia de marcha para a Gália, e a exigência que as igrejas de Nicodemia e de Niceia elegessem novos bispos, o que foi prontamente obedecido. O bispo de Teodoro de Laodiceia, na Síria, suspeito de querer imitar os seus pares rebeldes, recebeu uma carta brutal do imperador em que era convidado a meditar na triste sina de Eusébio e Teógnis, o que o fez calar-se. E foi assim que a partir de Outubro de 325 que Constantino, passou a policiar a fé no interior do corpo episcopal. Foram bastantes os bispos que se assustaram e a falarem entre si estas apreensões.

Para a história fica a vergonhosa memória dum concílio (de Niceia) em que uma caterva de bispos cobardes e vendidos à vontade arbitrária do imperador Constantino deixou que este definisse e impusesse alguns dos dogmas fundamentais da Igreja Católica, como a consubstancialidade entre Pai e o Filho e o credo trinitário. Constantino foi constituído em teólogo por sua exclusiva graça, com o seu capricho definiu para sempre o que os católicos deviam crer a respeito de Jesus. E, no entanto, o credo que rezam todos os católicos não procede duma qualquer inspiração que o espírito santo tenha iluminado os bispos co concílio, mas da santa coação exercida pelo brutal imperador romano sobre esses homens que Jesus teria desprezado. O exemplo do nazareno dando a vida pelas suas ideias devia parecer uma ingenuidade detestável a uns bispos que não hesitaram em renegar a sua fé e consciência em troca de poderem continuar a encher a pança.

Com uma hierarquia eclesial tão servil, foi fácil para o imperador servir-se a seu bel-prazer da Igreja Católica, seja para manter unido o império no quadro duma religião única, como para uso e abuso da sua megalomania pessoal. Constantino auto designava-se "bispo para os assuntos exterior" (episkopos tôn extos) da igreja; fez-se apelidar de "salvador designado por Deus" e "enviado do Senhor", ou seja, apóstolo; ordenou que lhe fossem prestadas honras de representante de Cristo (vicarios Christi); exigiu ser tratado de "nossa divindade" (nostrum numem) a seguir ao sacritissimus que, mais tarde, seria usado por alguns imperadores cristãos; quis que o eu palácio fosse considerado um templo (domus divina) e a sua residência privada considerada um sacrum cubiculum. E quando morreu, Constantino foi inumado como se tivesse sido o décimo terceiro apóstolo. Em resumo, Constantino fez com a Igreja Católica e as suas crenças, tudo o que lhe deu na gana, comportou-se como seu amo enquanto os bispos engoliam em seco e aceitavam... e foram enriquecendo à medida que o seu poder se fortalecia.

Mais, esse imperador que amedrontava a igreja, era tido por "chefe amado de Deus", "bispo da grei, nomeado por Deus" ou "exemplo de uma vida de temor a Deus, que ilumina toda a Humanidade", foi, na verdade, um personagem que frequentava cultos pagãos, homem cruel e sanguinário, responsável por massacres de populações inteiras, organizador de jogos de circo onde feras e ursos famintos despedaçavam às centenas de inimigos seus, um pai que degolou o seu próprio filho, Crispo, um marido que estrangulou a sua própria esposa, um parente que assassinou o sogro e o cunhado...em duas palavras, um autêntico princeps christianus (príncipe cristão). A sua mãe que a igreja converteu em "Santa Helena", passava por uma princesa britânica, quando for uma taberneira pagã com estabelecimento nos Balcãs, concubina de Constâncio Cloro, pai de Constantino. Aliás, Constantino era conhecido pelo filho da concubina.

Como é óbvio, um homem tão fascinante, poderoso e mau como foi esse imperador, não podia morrer sem fazer à história um cruel manguito, era-lhe impossível "ascender aos céus" não sem antes se rir dos bispos que tratara como títeres e da igreja Católica que ele fizera entrar na história. Daí que quando ficou doente, começou por ir a banhos quentes em Constantinopla e às relíquias de Luciano, patrono e protetor do arianismo, que fora discípulo do próprio Ario. Só por último, recebeu na sua quinta, Archyrona de Nicodemia, as águas de batismo, apesar de ter desejado recebe-las nas margens do Jordão, a exemplo de Jesus. Constantino veio a falecer a 22 de Maio de 337, depois de ter recebido o batismo que lhe fora administrado por outro correligionário de Luciano, de nome Eusébio. Visto assim, é evidente que o primeiro princeps christianus se despediu deste mundo como herege, pormenor que é fonte de muitos problemas para os historiadores "ortodoxos" mas que lhe foi perdoado até pelo santo Ambrósio, inimigo acérrimo do arianismo.

Foi pela mão desta personagem que a Igreja Católica começou, de facto, o seu caminho. Foi transformada numa instituição de poder, e tudo fez para se arrogar representar de forma exclusiva e ortodoxa a mensagem de Jesus, conforme se encontra consignada nos evangelhos, que ela própria escolheu e manipulou, sem nunca cuidar em lhe ser fiel.


Fontes:
Historia de las religiones, Siglo XXI, vol.5
Mentiras Fundamentais da Igreja Católica, Pepe Rodrigues

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