sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

O Concílio de Niceia e os Evangelhos



O Concílio

Voltemos ao ano de 325 da nossa era. Naquele tempo foi realizado o Concílio de Niceia, a atual cidade de Iznik na província da Anatólia, a parte asiática da Turquia em tempos designada Ásia Menor. Este foi o primeiro de dois concílios realizados na cidade, o segundo ocorreu em 787.

O primeiro concílio foi convocado pelo Imperador Flavius Valerius Constantinus (285-337), ou Constantino, filho de Constâncio I. Constantino, de quem se diz ser o primeiro imperador cristão, assumiu o poder aquando da morte do pai, em 306, e logo passou a ser a autoridade máxima, inicialmente, na Bretanha, na Gália e na Hispânia.

Aos poucos, assumiu o controlo total do Império Romano. Alguns anos antes, ainda no reinado de Domício Aureliano (270-275), os regentes romanos abandonaram a unidade religiosa que se verificou até à renúncia, por esse imperador, em 274, aos seus direitos divinos, próprios de tal governo. Constantino, porém, sempre almejou relançar essa unidade religiosa e viu no cristianismo, que então ganhava força e influência, uma oportunidade para alcançar esse objetivo.

Muitos são hoje os historiadores que analisaram o seu governo e que se manifestam unânimes em dizer que a sua conversão não foi tão completa quanto se supôs, pois Constantino não abdicou da sua posição como sumo-sacerdote do culto ao “Sol Invictus”, representação do deus persa Mitra, e só foi batizado no leito da morte. De facto, alguns elementos deste culto seriam depois absorvidos pelo cristianismo, como a comemoração do Natal no dia 25 de Dezembro.

Assim, o interesse principal de Constantino no cristianismo seria mesmo o do seu uso para fortalecimento da sua própria monarquia. O Imperador tinha um certo conhecimento da doutrina cristã e observou, durante o ano de 303, as perseguições impostas por Diocleciano. Tinha a noção dos cristãos, embora sendo uma minoria, chegarem a, no máximo, 10% da população do império e estarem concentrados nos grandes centros urbanos, principalmente em territórios inimigos.

Foi então que, em 325, convocou mais de 300 bispos para o Concílio de Niceia. O imperador, sempre de olho na unidade religiosa como um fator que o ajudaria a manter o poder, tinha a plena noção da existência de cisões no âmago da nova religião. O concílio deveria, portanto, cimentar de uma vez por todas os seus poderes. Entre os participantes constavam bispos orientais, que, como era costume, estavam em maioria. Entre eles contavam-se pelo menos três arcebispos – Arcebispo de Alexandria, Eustáquio de Antioquia e Macário de Jerusalém -, além das presenças de Eusébio de Nicomédia e de Eusébio de Cesareia. Representando o Ocidente estavam Marcus de Calábria (Itália), Cecilian de Cartago (África), Hosius de Córdova (Espanha), Nicasius de Dijon (França) e Domnus de Estridão (pelos territórios do Danúbio).

Os debates começaram. Entre os vários pontos discutidos na ocasião, estavam a questão ariana, que negava a equivalência entre Jesus e Deus, colocando Cristo como um homem e não como uma divindade; a celebração da Páscoa; o cisma de Milécio, fundador da Igreja dos Mártires; o batismo de hereges e o estatuto dos prisioneiros na perseguição realizada sob o comando de Licínio, o imperador romano destronado e condenado à morte pelo próprio Constantino.

A escolha dos Evangelhos canónicos

Foi durante este mesmo concílio que foram reveladas as versões da escolha dos Evangelhos canónicos. No arranque do cristianismo, havia o absurdo número de 315 textos! A versão oficial de como foi feita a sua escolha está registada em alguns documentos. Porém, mesmo que se trate de versões históricas, quando alguém as lê sente como era difícil ser-se prático e direto naqueles dias, sem que se deixasse o fanatismo ganhar força sobre as decisões a tomar.

Vejamos como terá acontecido. Na difícil missão de escolher quais seriam os textos “inspirados por Deus”, os bispos teriam espalhado os diversos textos no chão e reuniram-se para rezar. Nessa altura, durante a cerimónia, os quatro Evangelhos que hoje conhecemos (Mateus, Marcos, Lucas e João) levantaram-se por sim mesmos e foram depositar-se no altar.

Outra versão: todos os textos foram deixados sobre o altar e apenas os não inspirados - os apócrifos – caíram por si mesmos ao chão. Uma terceira versão fala da mesma passagem pela oração, o momento no qual o Espírito Santo entrou no recinto sob a forma de uma pomba e atravessou uma janela sem que esta se quebrasse. Em seguida, segredou-lhes ao ouvido os Evangelhos canónicos.

Misteriosamente, a Igreja escolheu quatro textos que, fechados em si mesmos, comportam diversas contradições. Mas parece simplesmente desconsiderar tal detalhe e insiste em manter o seu cânone neles baseado. A julgar pela explicação dos religiosos da época, é de crer que nem eles saberiam explicar-se de maneira convincente. Veja-se a declaração que Ireneu, bispo de Lyon, aventou para explicar a seleção:

“O Evangelho é a coluna da Igreja; a Igreja está espalhada por todo o mundo; o mundo tem quatro regiões; convém, portanto, que haja também quatro Evangelhos. O Evangelho é o sopro do vento divino da vida para os homens, e, pois, como há quatro ventos cardeais, daí a necessidade de quatro Evangelhos. […] O Verbo criador do Universo reina e brilha sobre os querubins, os querubins têm quatro formas, eis porque o Verbo nos obsequiou com quatro Evangelhos.”

Mas há registos históricos que mostram que nem tudo foi inspirado por Deus nesta escolha. Há, por exemplo, um texto que fala de um tal bispo Flávio, morto, durante os debates, vítima dos ferimentos causados pelos pontapés desferidos por um tal bispo Diodoro, ocorrido no Concílio de Trento, considerado o mais longo da história da Igreja. Isto entre outros incidentes registados. A autora Lorraine Boetner cita, na sua obra Catolicismo Romano:

“O Papa Gregório, o Grande, declarou que, primeiro, Macabeus, um livro apócrifo, não é canónico. O cardeal Ximenes, na sua Bíblia poliglota, exatamente antes do Concílio de Trento, exclui os apócrifos e a sua obra foi aprovada pelo papa Leão X. Será que estes papas se enganaram? Se estavam certos, a decisão do Concílio de Trento estava errada. Se estavam errados, onde fica a infabilidade do papa como mestre da doutrina?”

Obviamente, os concílios, longe de serem palco para uma unidade de opiniões, eram um campo de batalha de ideias e, por vezes, de socos e pontapés, semelhantes aos debates vistos no livro e no filme O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Porém, ao contrário do que se lê em O Código da Vinci, de Dan Brown, no houve nenhum tipo de concurso para a escolha dos Evangelhos, mas sim debates acalorados e por vezes confusos, cujo objetivo era mesmo o de diferenciar os textos entre os inúmeros oriundos de escolas gnósticas.

Lembremo-nos disto: falamos de uma época de grande conflito de interesses de ambos os lados, tanto da parte do imperador, que pretendia a unidade religiosa, quanto da dos próprios cristãos, cansados de perseguições e desejosos de dar à sua religião uma melhor e mais sólida estrutura.


In Os Arquivos Secretos do Vaticano, de Sérgio Pereira Couto

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