domingo, 2 de setembro de 2018

Ateísmo e humildade



Descobrir que os deuses não existem, para quem teve que fazer a descoberta contra a corrente familiar e por vezes a cultura em que está mergulhado, é, na minha opinião, um passo em frente. Mas é, mais que um ponto de chegada, o princípio de um caminho.

Tenho muitos amigos ateus, em várias partes do mundo, e alegra-me ver tantas opiniões lúcidas sobre religião. Mas muitos desses meus amigos por vezes exageram na agressividade com que se exprimem e, sobretudo, cometem alguns o erro de pensar que são mais inteligentes que os crentes. Mais de metade, seguramente, dos que hoje são ateus já foram crentes. Não tiveram uma mudança radical de intelecto. Aliás, foi com esse intelecto que conseguiram vencer um jogo difícil em que muitas das cartas que lhes davam estavam viciadas.

É normal algum ressentimento pelo sofrimento psicológico que muitos sentiram enquanto ainda eram religiosos, sobretudo os que estavam presos às seitas mais fundamentalistas. Mas é, deve ser, uma coisa passageira. Se não houver sectarismo nem fanatismo, as velhas amizades podem manter-se, os laços familiares não devem ser destruídos.

É de esperar também alguma revolta, quando os ateus presenciam a forma desavergonhada como os sacerdotes e pastores manipulam os fiéis para obterem efeitos políticos e para lhes tirarem dinheiro. Para quem tem os olhos abertos, é simplesmente aflitivo.

Mas a forma de discutir com os crentes não é o insulto, nem a piada fácil, nem a gritaria. É ajudá-los a pensar.

Como eu disse, descobrir que não há deuses é o começo da jornada. É que esse facto nos obriga a repensar uma quantidade de aspetos da nossa vida. Não havendo deuses, não há moralidade para além daquela que os seres humanos impõem a si próprios. Se queremos que coisas boas aconteçam, temos que fazê-las acontecer. A vida não é justa e não dá prémios nem castigos, apenas distribui graças e desgraças de forma totalmente cega.

A solidariedade humana é a única coisa que nos defende de ser arrastados nesse turbilhão desencontrado.

Há ateus que dizem que o ateísmo se resume à resposta negativa à questão filosófica de saber se existem deuses. Que para lá disso, não se deve ir.

É uma posição muito pouco ambiciosa. Pessoalmente, respondi a essa questão há dezenas de anos. Não haveria nada mais a discutir, para mim.

Mas a libertação da alienação religiosa, em princípio, serve para abrir caminho a um pensamento mais lúcido ou mais racional sobre uma quantidade de assuntos. É por isso que a maioria dos ateus se confessam humanistas, pois o humanismo vai além da negação dos deuses, procurando discutir e adotar uma moral secular válida para os nossos dias, com o objetivo de possibilitar a felicidade do maior número possível e também de evitar a infelicidade das minorias.

Por fim, quero fazer um aviso, sobretudo aos jovens ateus, mas na verdade a todos, porque é um aviso que faço constantemente a mim próprio: parabéns por se livrarem da religião, mas não pensem que é o único pedaço de irracionalidade que carregam entre as orelhas. Há muitas outras vacas sagradas que custa descobrir e meter no curral. O trabalho de duvidar, examinar as nossas crenças, ver se têm justificação e abandoná-las se estiverem erradas nunca tem fim. Por isso, um ateu dogmático é um absurdo.


Texto de Carlos Cabanita

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